...No princípio era o Verbo...

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Solidariediet da Light

- Qual é, taxista? tá escolhendo passageiro só porque num tem taxi no rio? - batia nervoso, a mão contra a cabeceira do banco carona, tantas vezes quanto verificava fazer efeito.
O velho senhor motorista encolhia-se entre seus ombros ossudos sob a camisa social, gestipulava e falava muitíssimo baixo, não pude ouvir o que dizia.
Na Rio Branco, Preto. um negrume. As silhuetas só distingüiam-se da escuridão pelos faróis dos carros - e somente da cintura pra baixo; da cintura pra cima só as luzes dos celulares. A impressão que se tinha era a de que não restava mais nada. que nenhum dos edifícios do centro existiam mais. O que existia e se desvelava era uma profunda falta de orientação, não viam-se os buracos na rua, os pitocos da calçada, o espaço era preenchido por aterradoras e indefinidas dimensões, não se sabia até onde podia-se andar, sem bater, nem cair, ou tropeçar, sem tatear com os pés. Nada.
Nenhum semáforo, nenhum letreiro luminoso. As pessoas sacodem seus indicadores inquietos contra a indiferença dos automóveis.
Quando a situação é dramática, cada parte, cada pequeno pedaço do quadro comunica a configuração geral. Eu olhava pros dedos em riste, e eles demonstravam a triste falta de autoridade e de importância com que se regavam as pessoas. Era estranho como elas pareciam plenamente dispostas a se jogar embaixo das rodas dos carros, desesperadas.
Taxis cheios. Ônibus lotados.

Quando saí da porta da empresa tinha me convencido a ir pra casa de metrô, antes do apagão. Mas quando botei o pé na calçada me ocorreu que meu estômago estava latejando dolorido, ácido, como se tivesse tomado um porre de uísque barato e ainda de barriga vazia. Fui à Praça Mauá a procura da barraquinha da Fátima, comer um salcichão. Sentei, pedi, e pronto. nada. Foi o que me salvou, sabe, foi Algo a mais! eu podia perfeitamente estar presa no metrô!
Um choque, uma sensação de pânico me lambeu o corpo, e esse choque por ironia se assemelhava muito a um choque elétrico. (E o resto do país às escuras...) De repente me senti lacrada nos vagões como imaginava as pessoas no metrô e nos trens, sem ar.

Fui voltando aos poucos, a prestar atenção nas conversas a minha volta, numa das maiores avenidas do Rio de Janeiro. A luz só volta amanhã meus querido, não tem nadinha funcionando na cidade, dizia uma moça de voz clara e notavelmente irritada. Bateu o flip do celular com tanta força que temi pelo seu visor. Me senti bastante cuidadosa (ou pão-dura) comparado o meu trato com o celular com o da gordinha do meu lado, e olha que minha condição de comprar um outro aparelho era bem mais contundente que a dela.
Me voltei para observar as pessoas, e suas expressões eram tão somente a denúncia esganiçada do medo. Nenhuma comunicação com o resto do mundo, estavam todos isolados nas regiões em que se encontravam. As empresas de celular, como todas as outras, totalmente às escuras, enquanto os trabalhadores provavelmente suam seu suor mais carregado de exaustão para descobrir o que fazer com essa bomba que recaíra sobre suas consciências. Era a maior crise presenciada por mim desde a cesária. Os apagões do FHC ficaram na sola depois dessa, pensei com certo nível de espanto.
- O negócio é que uma usina da Light na fronteira com o Paraguai EXPLODIU - uma voz firme destoava do resto, pela sua franca tranquilidade. Falava enfaticamente e apesar disso, dizia como quem conta uma fofoca vinda de fontes obscuras. - Metade do Brasil tá às cegas, dá pra imaginar? - retrucou uma voz envelhecida, amarelada, e bem mais rouca que a primeira.

Perto de onde eu tava havia um grupo barulhento de pessoas, muitos timbres e tons diferentes disputavam os ouvidos mais próximos. Era algo sobre formar grupos que estavam falando. Cheguei mais perto e conforme me aproximava, as vozes foram se eqüalizando, consegui então entender por alto, que pretendiam formar frentes para encher os taxis, e negociar com os motoristas um preço acessível, alguns acrescentavam, alegando não ter mais que 2,80 no bolso. De repente, um anexo do agrupamento onde eu me infiltrara, gritou o nome do meu bairro. Corri pra perto e acabei me juntando a um grupo de 3 homens e mais uma moça. A moça parecia ter a mesma condição financeira que eu, enquanto os rapazes eram claramente mais pobres. Sem nem pensar entramos no primeiro taxi que Parou - aparentemente por benevolência divina! - e logo em seguida me ocorreu o quão incauta eu podia estar sendo. Não conhecia aqueles homens, nem o motorista, e a paranóia da cidade já havia me impregnado de tal maneira que me causou estranheza esse mecanismo de auto-proteção não ter disparado ao ver os sujeitos.

A experiência que todos viviam no Rio, e nos demais 7 estados do Brasil, tocava a todos de diversas maneiras. Pensávamos, sentíamos como um só povo, lesado. Por algumas horas, a impressão era de que todos haviam recuperado seus sensos de unicidade, e consciência comum, que fora totalmente arrancado de nós quando surgiu primeiro a idéia de governança. Esse sentimento era Algo que nem os mais ousados projetos presidenciais conseguiram desenvolver nos cidadãos, sob sua autarquia.
Recomendava-se no jornal que saíssemos em grupos, fiquei sabendo pelo taxista. Nos sinais, civis se prontificaram a sinalizar o tráfego. O sacrifício era total e consciente, todos trabalhavam - de acordo com suas disponibilidades - em pról da segurança e do transporte de todos. Naquela noite, pela primeira vez no país, não houve sequer uma morte por acidentes de trânsito.

Quando chegamos na Rocinha, para a surpresa geral, a comunidade em que morava o mais jovem do taxi, Jamilton, estava brilhando, acesa, com todo o vigor de sua gente.
O caos horizontaliza as pessoas, me surgiu na mente a frase pronta... desprevilegia os que nasceram de cú pra lua, os põe em pé de igualdade com os fodidos outros, tantos, com aqueles que limpam seus banheiros (suas privadas), com aqueles que fabricam os O.B.'s das donas de casa, com os temidos marginais, os excomungados bandidos. Cai por tabelas a sensação meritocrática feudal da Nobreza, e Deus por fim revela que não se alinha muito com a idéia de que os nascidos nos baixos estamentos o tenham feito em função de Seu excêntrico senso de justiça, afinal, apesar da Zona Sul estar no breu, a favela continuava brilhando.

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