sua grande tarefa agora era: esquecer de si mesma.
a décima segunda das missões de Hércules, era esta. e era agora.
a dificuldade era grande, pq veja, seu esforço envolvia esquecer, em primeiro lugar, deixar morrer o peixinho dourado da memória de quem era, matá-lo de fome, que fosse! vê-lo boiar sobre as bolhas do respiradouro, era o melhor que podia extrair do esforço que empreendia. significava o sucesso da sua tentativa.
esquecer significava poder observar a face moribunda do que havia morrido sem remorsos, sem culpa, sem lágrimas salgadas. sem também pensamentos absurdos, de de repente oferecer-lhe ração fresca depois de desalimentado seu corpo. se fosse o peixe como os homens estaria ainda impregnando o ar com o mau cheiro de sua partida, e o esquecimento inda assim prevaleceria sobre a dissonância estética do ocorrido.
o esquecimento é implacável. ele não "dá branco" e logo em seguida corre o risco de lembrar-se novamente... o esquecimento é o esforço persistente em preservar o branco, é a autodisciplina dos iogues. o senso de propósito impenetrável das celibatárias. o esquecimento é contínuo, é interessado.
o compromisso assumido com o esquecer é semelhante ao de ter um filho, tem de se cuidar para que seja esquecido, o que quer que seja, para que se conserve morrido, dia após dia após dias...
mas falava de sua dificuldade, sua dificuldade era das maiores, das inconcebíveis!, e ela sabia disso! sua ambição era o impossível! era simultaneamente afastar de si os seus atributos preferidos, e afastar também os detestados. estes últimos que secretamente constituiam os nós infinitos de sua rede de infinitas desculpas e discursos. seus pés na porta, seus absurdos... escondiam a trama íntima de suas desmedidas, também infinitas, dos seus gritos e dos seus versos bregas.
toda vez que voltava da análise olhava para uma parte diferente de sua rede/renda pessoal. quando olhamos algo em nossas mãos temos incontáveis combinações de posições que combinadas nos oferecem visões diferentes sobre o que desejamos ver. tendo dois olhos então!, multiplicamos as possibilidades! naquele dia ela escolhera usar as duas mãos próximas o suficiente do rosto para que se deformasse a concepção ordinária da renda que tinha em mãos, mas não tão próximo que interferisse na nitidez da imagem. queria certificar-se de que naquele trabalho seria a Lucidez, e seria a Proximidade que lhe mostraria a natureza do que buscava conhecer. por isso ousou usar também seus dois olhos, garantindo a Profundidade, dessa forma. e usou eles bem abertos, atenta à percepção periférica. queria que a visão do Todo pudesse inferir ao que veria compreensões inesperadas. sua decisão partia das poucas certezas que tinha certeza que tinha e que certamente eram dela, essa certeza dizia que Tudo significava, senão nada tinha sentido. óbvio que essa certeza era também um preceito antropológico, mas isso não quer dizer nada. ou melhor, o fato de ser um preceito antropológico não faz com que seja uma certeza menos dela do que era no período anterior.
talvez se por trás da renda surgisse o rosto articulado de sua mãe lhe pedindo para fritar um ovo, talvez esse rosto pudesse acrescentar alguma observação conclusiva à forma como se sentia em relação a renda. ou talvez oferecesse à renda uma fala que lhe desse a possibilidade de expressar-se por si mesma. tudo significa, ela repetia repetida...
sabia que o objeto para o qual olhava, ainda estudando cuidadosamente a distância, era o fundamento de sua falta de tato com uns, de sua grandeza de salto com outros. esses nós botavam o nariz de pé, o rabo entre as coxas. era uma parte de si inconveniente, birrenta. seus enredos eram complexíssimos, difíceis de serem acompanhados, como as teorizações de um esquizofrênico. suas insatisfações estavam todas lá, vivas, latejantes, e seus calos lhes davam alguma segurança, uma segurança de escudos e lanças, alguma segurança que ela queria esquecer.
quis parar um pouco de escrever agora...
o que preenche a marcha pelo esquecimento não consola o exílio involuntário do esquecido. tudo o que define a glória progressiva de quem esquece, passa ao largo do sentimento espesso de quem permanece esquecido.
nessa segunda parte, perceber que era a mim que esquecia,.... me tirou todas as noções, planificou todos os relevos. já não sabia se tirar-me de mim era zelo, ou era o erro como todas as minhas fantasias... não tinha conceito, nem palavra perfeita pro vazio que dentro da bravura do esquecer coexistia. só haviam frases curtas. encerradas em si mesmas. não se extendiam além do ponto. não comunicavam com as outras vizinhas. o que quer que fosse eu se desmilingüia como se dizesse "minha última esperança era que você ao menos me fizesse companhia", aquela parte de nós sempre exigindo misericórdia, aquela parte de mim conjugando em nós para se sentir menos envergonhada, aquela parte de mim que não aceitava ceder por coisa alguma, aquela alguma segurança, aquela alguma parte do espelho que precisa sempre de apoio, aquele não foi o suficiente, aquela insatisfação de nunca ser o bastante, e de estar sempre ensaiando performances mais brilhantes, arrancar mais palmas, lugar de barulho, de debates mentais intermináveis.
aquele encarceramento de alma.
aquele falso controle.
queria ver-me na abrangência do Nada, no espírito que colhe livremente seus pecados, sem se importar realmente com quais são eles, e quem poderia ser o possível interessado. a beleza do que me esperava era poder, como meus olhos, como meus olhos combinados com minhas mãos, como meus olhos combinados com a clareza de minha intenção, aprender a usar toda essa articulação sem automatismos. buscar o meu fundo, o meu oco, o erógeno no puroingênuoilibado, ser o livre ato em execução, sentir o êxtase espiritual de um palavrão bem pronunciado, isso tudo só se podia ser sem os óculos, sem os prontuários. fazer uso da consciência do ator precisava vir com a consciência do palco.
ser o salto, a corda, a planta, o arrumado, ser também o caos, o dicionário, o bem-amado, ser sujeito tudo sem se prender à roupa que veste seu predicado.
Eu sou a consciência enquanto as palavras ainda estão sendo buscadas.