...No princípio era o Verbo...

domingo, 10 de agosto de 2014

o menino

Fico imaginando o menino correndo pela chuva, as pernas compridas, toda vida, saltando as poças e deixando pra trás o ponto do ônibus, as irregularidades da calçada
Sorriso no rosto, a camisa molhada, os olhos, fechados
Suas pernas são, assim, suas asas, e o dom, seu voo tão alto...

Um menino de papel e lápis nas mãos, tomando notas do que lhe toca na vida, guardando a chuva e os seus pingos, fazendo linhas de texto, um cordão, com tudo o que lhe sensibiliza a retina. Toca, com isso, com a aptidão destacada de um multi instrumentista, o coração e o mundo dos outros com seus dedos treinados de artista.

Fico imaginando o menino e calculo o tamanho de seus sonhos pela sua altura em metros. Pela distância que alcançam seus Olhos de Ver quando se lançam à missão de revelar a beleza - sua mais secreta arte, mais fina e mais interior que o jogo honesto que faz com as palavras. Faz parecer, o menino, que o golpe que vale a investida é o golpe de vista, são as imagens líricas de um romance em prosa, e que as ilusões e devaneios não são perda de tempo, pelo contrário, são o bom desfrute do tempo que temos.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

com junto

Amor é quando os meus tornam-se nossos
Atravessam-se os rumos
Ordena-se aos pares
Planos são mútuos
O artigo é oculto
Saliva é doce
A vida é láctea
E a mão é dupla

terça-feira, 15 de julho de 2014

corre o rio

Todas as decisões terminativas são e não-são definitivas
Elas ordenam e realmente fazem as portas se fecharem
atrás de si
Mas ignoram o futuro
que as espera
depois
E através delas

"Pois posse é pobreza e medo: a posse despreocupada é ter possuído algo e dele ter aberto mão!"

dress coding

A mulher superior
Vê as coisas com tanta altura
(Quase não enxerga o chão que pisa, e tropeça)
Sabe de cor o manual de boas maneiras
E a melhor maneira de ter boas ideias
Ideias melhores
E sabe como superar os outros
(Enquanto a sombra cresce projetada às suas costas)
Num jeito de olhar, numa jogada de cabelo
A mulher treinada para ser fatal
É patética
e mortal
para ela mesma

class room

nós: esquemas fechados, fluxogramas
Vida: sistemas abertos, rede de pesca
(com uso alternativo grátis, serve também pra deitar)

nós: aprender é repetir
Vida: aprender é esquecer como se fazia

nós: desenhar para depois colorir
Vida: pintar. com os dedos. e para fora da tela
(aplicável em: rostos, paredes, e confissões)

nós: traineiras miúdas atochadas de pertences
Vida: voo livre, planar leve e independente

fotofolia

o trauma e o insight sensibilizam a mesma membrana:
a que nos fecha e reserva do mundo
e a que se abre e floresce no outro

odoyá

que tipo de resposta um sujeito vai buscar junto ao mar?

aquela que silencia todas as perguntas

as certezas mais absolutas, que racham a gente
ao meio e por dentro
desde o centro
também se quebram com as ondas

vai sentir o solo firme amolecer
sob a planta dos pés
na areia

vai enevoar sua razão
ter férias do eu

vai sentir-se pequeno
junto ao tanto que ignora
reconhecer-se
na imensidão do que lhe abriga
e aonde pertence

vai libertar-se na gravidade zero das águas
do peso constante de ser alguém
com responsabilidades
e malas e papéis e gavetas de meias

vai ser manso
no vai-e-vem
das marés

vai buscar a não-resposta
do horizonte
anônimo
que o encara,
e cala

vai buscar o ensinamento rítmico das ondas
que não param de chegar
e se esvair

e descobrir que suas águas
têm o poder de dizer
o que é pra ficar
e o que deve partir
e pode esvaziar a turbulência
e pacificar o sofrimento
e pode trazer palavras profundas do vazio
e escoar o som
para o silêncio
e aquietar o corpo
quando se desentende com a mente

segunda-feira, 14 de julho de 2014

moleskine

os pedaços os fiapos e os quases, os cacos contam histórias melhores

a haste de um óculos solta da armação, ilhada por zilhares de pedacinhos de vidro sem cor espatifados
cobrindo não mais que um décimo de nada da calçada
trazem a pergunta pronta, na lata: o que aconteceu aqui?
intempestiva, cruza como um relâmpago perdido em dia de céu claro, quase desapercebido
no terreno mal trabalhado das coisas que pensamos sem ter toda consciência do fato

que tipo de arrebatamento teve o homem - porque sim, a haste foi capaz de dizê-lo, mesmo sem vir com a identidade e o gênero do sujeito anexados
na sarjeta -
o homem que caminhava pela rua calma, quase desértica?
a logo da grife na lateral tenta ostentar uma certa superioridade frente aos desconfortos e à própria deficiência,
como se dissesse estar ali para embelezar os olhos diferenciados que os vestem
por estética, e não (nunca) por urgente necessidade

que fim levou o homem dos óculos gucci, enfim e então, tão mortal e suscetível a imprevistos,
tão na mão da miséria surpreendente da vida quanto um João ou um Zé de vista ruim igual
e não era porque não tinha conseguido enxergar o imprevisível vindo, rindo, prque afinal
com óculos de marca, há pouco o quê um homem possa ser privado de ver
ou não?

nem a armação ele tentou salvar. será que ele saía varado da cena imaginária? foi um soco que partiu a lente em mil pedaços? Será que correu pra fora da história e deixou os óculos e sabe-se lá o quê mais
para trás?

não são mistérios que valham a pena serem investigados, mas quem vê arte nos ocasos, no fim de festa, percebe
e toma notas
se não inteiramente precisas e valiosas, pelo menos dignas da tinta
até pq tanto a caneta de dez centavos quanto o pensamento são, os dois somados, quase 0800

domingo, 6 de abril de 2014

nas pautas

passos apressados, olhar esquivo
não sei se está fugido da polícia, se quer só sumir
pra ficar então bem distante de tudo
levantar âncora, ver zarpar seus próprios navios
parece que passa ao longe dos outros
nem esbarra
como que sobrevoa o amontoado de corpos
se infiltra
ou se
desembaraça
para fora da órbita
parece que quer passar desapercebido,
discreto e mudo
não fosse seu tamanho
e o jeito atravessado de encarar
e a mania de observar tudo
tão de dentro
era capaz
que não se notasse ele ali
agora parado,
esperando o sinal abrir
com suas mínimas e definitivas
ações
pesadas
se vestisse terno
e discutisse trivialidades sob sol no centro
em frente ao sinal vermelho
não pareceria tão a parte, com crachá de empresa
de gente grande,
e os tênis de amarrar sujos das poças
cinzento, o tecido e as manchas de água de rua
- ele não passa em branco
isto também é definitivo

paira com sono e sem grandes expressões
visíveis
não dá pra saber se está mesmo ali
se sente desprezo pelo que vê, se é medo
o que esconde,
preso, com a forma inteiramente sólida do seu sentimento
um mormaço encobre o lugar onde as intenções se revelam neste homem
mesmo que tivesse os olhos claros
haveria essa sombra
feita abaixo daquilo que ele permite que se veja
para enfim ocultar o recanto plutoniano e embaçado
de quem ele verdadeiramente é
(ou parece ser)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

cocar

feitas as minhas, palavras
combinados os meus rascunhos
vestidos os meus jeans
passivos os meus verbos
indireta a minha ordem
arbitrária a linha reta
em silêncio é meu testemunho
de calado sinto medo
quando escuro acordado, paro
e amanhecendo a luz, bocejo
e esticado o braço,
o arco
apagada a luz, me vejo

quinta-feira, 20 de março de 2014

ver o símio

ver o símio
encarar cara-a-cara
adorar a verdade
coroar
o crânio que resta
e que conta histórias
verídicas

amar o que sobra
invicto
às poeiras dispensáveis
do recinto

aprender a espanar
os trapos
os argumentos baratos
e descobrir o honesto

revira o discurso
e enfrentar,
com tudo
a frieza sem plásticas
(macaca)
do que é verossímil

porta de incêndio

vou deixar você descobrir meus truques
depois que você for fuçar
os fios de que sou feita

vou permitir que você chegue
onde nenhum outro homem chegou
à superfície lua da minha mente
à superfície crua da minha boca, rente

vou deixar
a porta aberta
você entrar
e eu te espero
testemunha
do espaço que vivo e abro
pra você
chegar

reflex (06.12.13)

(...)

mas existe uma revolução silenciosa que acontece quando pares de olhos não me encaram mais. quando estou só. primeiro, um alívio. não preciso
e depois, quando o silêncio é mais profundo, a pergunta: por que me revolto? quem é esse outro que me intimida tanto? por que eu me acovardo quando me acovardo, e por que me visto de armas quando me visto de armas? parece filosofia do mundo de sofia, mas é espontâneo. quero mesmo saber.

quem é esse outro? contra o qual não tenho chances? contra o qual não tenho chances de me mostrar como sou - inteira, flácida, generosa, arredia, ácida, intrépida, cruel, amável, carinhosa, boa amante, todas essas...

minha cabeça colhe características boas e ruins e eu já nem sei mais qual é o critério. não sei quem me ensinou isso. quem me ensinou a ser assim.

no começo me disseram que era bom ser quieta e concentrada (que eu não era). depois me ensinaram que é bom ser expressiva e atraente (que eu não me sentia sendo). me disseram que é ruim falar o que pensa no ambiente de trabalho (que eu faço, profissionalmente). me disseram que é importante ser honesto, franco e transparente (que eu sempre fui, mas começo a duvidar desse conselho, em especial).

não sei mais de nada.

estou abraçada em minha inocência como a uma bola grande, do meu tamanho, estendida sobre ela. sem saber o que fazer com ela. sem querer jogar ela fora. isso não, eu me recuso, juro. não vou jogar. mas tem outras ferramentas que talvez eu precise alcançar, com as mãos que agora palmeiam a bola.

preciso aceitar que me chateio. que espero. que desejo. preciso validar o que me chateia, o que eu espero e desejo. e não só o anseio que me chega de bandeja. não só o que me espera. não só o que em mim, chateia.

como dizer o que sinto ao mundo que eu sinto que não quer nada comigo?
muito difícil... muito difícil.

quando sinto que sinto, que queria mais desse outro, que precisava mais dele, me sinto em um beco sem saída. tipo E AGORA? agora eu senti e essa porra não vai adiantar nada.

mas também não posso pôr minha fisiologia à prova por causa de um outro que não sente o que eu sinto, que não sabe como eu sou, e que - doa a quem me doer - se precisar se salvar em alguma situação, pode tranquilamente me deixar na mão. aliás, já faz isso.

que aprendizado fudido. esse vai e vém do que quero com/ aceito de/ o outro.
acho que cansei um pouco...

JÁ Consumidos & JÁ Consumados

Quem sou eu