...No princípio era o Verbo...

domingo, 8 de agosto de 2010

Um brinde à Vida Eterna!

- agora? - ela quis perguntar, de impulso, de costume, e assim o fez.

- sim, agora... - ele coçou a cuca, carinhou a barba e acrescentou, com o carisma e a tranquilidade de quem olha para uma velha situação conhecida. - agora. e antes também...

- agora? agora eu sou um eu que fala um pooouco menos sobre si.
mas você sabe o quanto amoodeio definições, não sabe? claro que sabe!
eu odeio a truculência da nomenclatura, João!!! mas me delicio imensamente ao enovelar-me em seus encantos... como um vício qualquer sabe? como cheiro de cigarro na roupa!
sabes que não posso nem dizer esse sentimento?! não posso! sem que ele me invada a espinha e rasgue o véu do mundo dos pensamentos! deslumbro-me com tantos potes em que podem caber a minha idéia, tantas caixas, entalhadas, abertas, fechadas, de aço, coloridas, de cortiça! tantas palavras, tantos conceitos e ainda assim, tantas sobras...!

...

fez-se um silêncio. um silêncio comum ao cessar das grandes tempestades. observe-o, principalmente em cidades ou vilas, verás quão maior é esta percepção do que mero lapso sonoro. o rosto da menina, iluminado pela chama tremulante da vela, os olhos fechados, tinha a expressão aliviada de quem ostenta em Glória, seu coração aberto. uma Lótus em pétalas, dentro dela via-se germinar um ponto dourado de luz, e à sua volta raios rosados irradiavam de seu Corpo Áurico.

quando o Amor se abate, um corpo torna-se a medida irrisória do que é pouco. o Amor quer também o outro.

a mentira mais mal contada do mundo é que cegos não vêem. bom, em geral até faz sentido, mas este cego aqui, esse tal de João, podia testemunhar algo que nunca antes tinha sido mirado por um ser humano encarnado: um corpo. jovem / se enchendo de Amor, Divino - coisa que enxergantes jamais poderiam ver com suas maquininhas oculares superestimadas! era incrível a cena, vista de cima: descia uma luz tão forte do Reino dos Céus, que os Mestres espirituais que orientavam nosso grupo nos pediram para afastarmo-nos um pouco. algo em minha cabeça dizia que havia de ter algo com a interferência da nossa energia imperfeita na comunicação que se dava entre os Planos Superiores e a jovem menina.

tudo se harmonizava à volta deles. de cima conseguíamos ver as moléculas de Amor, organizando todo o Caos energético vindo do vilarejo que circundava a cabana pobremente iluminada. aos olhos da matéria, a única luz visível pelo lado de fora era encontrada por entre as frestas do eucalipto e no entanto, sob a visão do espírito, o que antes era apenas o usual breu da floresta, transformava-se num carnaval inacreditável de seres - de todas feições e feitios - e Luzes cambiantes, rondando em torno dos dois.

se nos suspendêsse-nos até o topo do globo terrestre, ainda assim veríamos a Luz dourada irradiada por aquela conversa tão insuspeitadamente radiante. e como essa fagulha, muitas muitas outras, espalhadas pelo Planeta. produzidas por situações tão aparentemente ordinárias que vocês ririam de mim caso as descrevesse! essas fagulhas são como rimas, ocasos de harmonia, choques de placas tectônicas humanas cuja fonte pode ser um beijo saudoso, uma peça de arte feita em conjuntos, qualquer coisa. acontece! vocês verão... as almas se impactam, por um momento se aparelham e quando acontece, produzem luz! é difícil de acreditar, e eu também duvidaria, mas os homens mais admiráveis dessa Terra, mesmo os mais sábios, apavoraram-se com a infinidade de mistérios envolvendo o Grande Espírito com que se depararam ao desligarem-se da matéria.

João foi ao quarto, dividido da cozinha por uma simples canga presa ao batente, voltando em pouco tempo com seu atabaque.
Laís sorria, com os olhos semi-cerrados - expressão tão comum ao estado de espírito transcendente! - e com as mãos inconscientemente impostas em Granthi mudrá, aguardava em profunda paz seu companheiro voltar.

ao sentar-se, o senhor, que não era seu avô nem nada mas podia ter sido, tomou uma respiração prolongada e suspirou as seguintes palavras: defina-se agora. não defina a etapa personal da sua vida, pois isto todos podem deduzir.
quando falo de você, falo de uma instância mais especial mais distinta de você. uma parte de você que por acaso te sussurrou todas essas coisas bonitas e tocantes que ouvistes enquanto estavas de olhos fechados...

mais uma pausa se fez, e a menina tornou-se levemente apreensiva pelo que ela considerou, erradamente, um puxão-de-orelha. esperou o velho então prosseguir...

- descreva de alguma forma, não importa qual, o insight que acabou de ter sobre si mesma, Laís. não se esconda! todos nós já passamos pela percepção infâme que é a de sermos menores do que o nosso ego diz que somos! vamos, descontraia-se!

ela sorriu, despertando em si, novamente, a doçura e o abandono que a embalavam instantes antes. respirou fundo, e prendeu a respiração lá dentro dos pulmões, enquanto pensava sobre o que o velho tinha acabado de a incumbir.
enquanto ela tomava seus segundos para refletir, velho João tocava suavemente seu tambor, e este ressoava apenas em torno da cabana, não invadia o sono dos vizinhos, nem a paz dos ainda despertos. era incrível que mãos tão antigas pudessem precisar a intensidade exata que lhes cabia àquela hora da noite!
o velho João era conhecido no vilarejo por ser um daqueles sujeitos que jamais deixam rastros ou zumbidos por onde passam...

- acho que sou... ou somos, ? - encorajando-se, Laís continuou com sua usual riqueza gestual ao descrever a si mesma e aos outros para o velho senhor...
- uma escada! ou uma porta para o Nada, para o Reino do Desconhecido. e cada um de nós, é uma escada ou uma porta bem diferentes uma das outras, sabe? tem umas que são tão largas que 3 obesos poderiam subir nela sem esbarrar seus pneuzinhos! tem outras que são tão estreitas que só comportam a si mesmas e olhe lá! estas são aquelas escadas de plástico que estão sempre rangendo e prestes a desmontar! e uma não é melhor, nem pior que a outra por suas características, cada uma acessa o Poder da forma como lhe cabe, da forma como escolheu pra si, ao longo de tooodas as suas vidas anteriores...
não é assim, João?? - inquiriu o velho com o olhar flamejante tão comum aos filhos e filhas de Iansã. este olhar deu ao senhor o direito de uma gargalhada que sumia gradualmente, uma gargalhada espaçada, tranquila, e limpíssima! como se os pulmões daquele ancião não tivessem nunca sido tocados por qualquer impureza!


- é assim sim, Laís, é assim... - João deu os últimos toques no atabaque, e ao pronunciar as derradeiras palavras, com a mesma maciez que João chegara à Vida, foi com esta que João saíra dela. fechou os olhos pela última vez, e tranquilamente fez a passagem.

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